Na noite desse último dia 16 de maio, na sede do Instituto Cultural Confraria dos Pretos Velhos de Umbanda, tivemos a honra de receber o Padre Rene José, da Igreja Católica Apostólica Romana, com a palestra: “O Diálogo como Caminho de Superação da Intolerância e Construtor de Pontes”.
Estiveram presentes também Profª. Eliza Gabriel (Igreja Messiânica / COMICIN), Mãe Nesilda (Candomblé), Profª. Vânia Soares (Fórum Inter-religioso para uma Cultura de Paz e Liberdade de Crença do Estado de São Paulo / Secretaria da Justiça e Cidadania), Pai Evandro Fernandes (Umbanda), Pastor Jair Alves (Igreja Metodista), Akinyàlé Elias (Culto de Ifá) e o Profº. Roberson Marcomini (Fórum Inter-religioso para uma Cultura de Paz e Liberdade de Crença do Município de Limeira / ETEC Trajano Camargo Limeira).
Gratidão a todos que prestigiaram esse encontro maravilhoso. Isso é Respeito e Amor ao próximo!
Leia abaixo o texto da palestra que o Padre Rene disponibilizou para a Confraria dos Pretos Velhos de Umbanda.
A violência é um dos grandes males que assola nossa sociedade.
O diálogo como caminho de superação da intolerância religiosa e construtor de pontes entre irmãos
Pe. Rene José de Sousa (1)
Na véspera do terceiro milênio, muito se questionava como seria o indivíduo do século XXI, pois, com o racionalismo e o empirismo da modernidade e os avanços tecnológicos e científicos em meados do século XIX em diante, concluía-se que o ser humano estaria rompendo com estruturas arcaicas religiosas, e adentraria numa nova era, onde não necessitaria de certas muletas existências para ser ele mesmo, mas um novo ser, cujo horizonte e consciência seriam ampliados (2). Grande foi realmente a expectativa, já que notáveis passos foram dados e avanços tremendos foram iniciados, mas, com a transição milenar, não se obteve o resultado tão esperado porque o indivíduo ao invés de romper com as estruturas ditas arcaicas, apegou-se mais ainda a elas e ressignificou seu modo de ser e apresentar no mundo perpassando pelo viés da espiritualidade (3).
O novo milênio realmente trouxe algo novo abaixo do sol, que foi o retorno ao sagrado e o interesse acadêmico pelos diversos fenômenos religiosos e as experiências que se faziam nesse campo (4). Muitas foram as doutrinas espiritualistas redescobertas (5) e maior ainda foi a necessidade de se espiritualizar, não somente nas doutrinas redescobertas mas, nas estruturas religiosas que já existiam. Ao mesmo tempo em que o ser humano se espiritualizava, começou a eclodir em todo o globo terrestre posturas fundamentalistas, ações violentas contra a crença alheia e atitudes intolerante em grupos iguais, como é o caso da religião cristã. As relações nunca foram harmoniosas, isso é fato, mas, do início do milênio dito espiritualizado em diante, tornou-se ainda mais perceptível. Mas a pergunta que surge é, por que o ser humano do século XXI, que se diz civilizado e espiritualizado, é vítima e autor de tanta violência contra aquilo que é sagrado para o outro? Na pós modernidade, a violência é um modo de legitimar uma identidade religiosa por meio do medo? A religião legitima o fundamentalismo (6) ou possibilita a gestação de uma nova consciência que perpassa pela alteridade?
A violência é um dos grandes males que assola nossa sociedade. Além de estar escancarada nas páginas dos jornais, redes sociais, sites de notícias e nas pautas das políticas de segurança pública, está epidemicamente alastrada em formas mais sutis, quase invisíveis, latentes em nossos modos de pensar, falar e até de resolver problemas. Diante da crescente espiral da violência, destaco a de cunho religioso que ronda nossas praças, escolas, Igrejas, templos e demais grupos sociais, incitando ódio e atitudes violentas para com grupos de diversas tradições religiosas.
Pensa-se que no Brasil não existe preconceito, intolerância religiosa, racismo, nem homofobia. É até comum ouvirmos essas afirmações no meio social, pois, quem as proferem, simplesmente querem tampar o sol com a peneira referente à diversidade que se encontra na hodierna sociedade. É um discurso de isenção de responsabilidade e acobertamento dos verdadeiros sentimentos referente ao plural que vive no meio de nós. Pois quando incitados são os primeiros a assumirem a frente de batalha e assim, anula-se o que até então era amigo e amiga. As eleições de 2018 exemplifica muito bem o que aqui refletimos.
O ódio sempre existiu, não é algo atual. Mas aqui no Brasil, devido a sua fama de tolerância e boa convivência, fez com que este ficasse incubado, até o ano atual. Não estamos afirmando que anteriormente não existisse atitudes fundamentalistas e violentas no Brasil, ao contrário, sempre existiu, como por exemplo, os ataque aos Terreiros de Umbanda e Candomblé e seus adeptos e as igrejas Católicas, mas, destacamos o desabrochar do sentimento de ódio que traz junto de si o preconceito, racismo, intolerância religiosa e homofobia que segundo alguns em suas verborragias não existiam mas, que vieram a tona com um força tremenda. São líderes religiosos de diversas tradições que instrumentalizam a religião e estimulam direta ou indiretamente a violência (7), e tal postura recebe acolhimento por alguns fiéis que reproduzem de forma até mais drástica. A máxima que ronda as redes sociais se faz verdade, realmente o gigante despertou, mas este não é a nação consciente dos seus direitos e deveres, mas Golias (8) que estava adormecido.
A Constituição Federal, no artigo 5º, § VI, afirma ser “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.”(9) Essa lei deveria trazer tranquilidade aos adeptos das diversas tradições religiosas, mas não é o que se percebe diante da espiral da violência. Pois, templos estão sendo cada vez mais invadidos e profanados e a liberdade religiosa cerceada em todas as suas formas de se apresentar. Segundo o site de notícias Estadão, em 2017 foram 169 casos, sendo que os maiores casos foram 35 em São Paulo, 33 no Rio e 14 em Minas (10). Esses são os casos denunciados, mas há aqueles que não procuraram as autoridades para registrar boletim de ocorrência por medo de coerção por parte agressores, logo, os números estatísticos sobem assustadoramente. A Igreja Católica por meio de seus documentos, em especial a declaração DIGNITATIS HUMANAE, sobre a liberdade religiosa no parágrafo 2 diz que “a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste no seguinte: todos os seres humanos devem estar livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites. Este direito da pessoa humana à liberdade religiosa na ordem jurídica da sociedade deve ser de tal modo reconhecido que se torne um direito civil”. A Igreja Católica é contra toda e qualquer forma de violência, em especial, no que tange nossa mesa, a violência religiosa. Pois, esta, vai contra o mandamento do amor expresso em João 13,34:
“Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei: amai-vos assim uns aos outros”.
Diante da atual sociedade marcada pela diversidade religiosa, e por manifestações fundamentalistas, se faz cada vez mais salientar a necessidade do diálogo como caminho (11) de superação dos fundamentalismos e “atitude para com o outro, pois deste modo reconhece-se a sua alteridade, em sua diferença que lhe permite ser um tu que pode complementar o próprio eu; a aceitação da diferença do outro significa a sua acolhida como sujeito com seus direitos e não como um simples objeto” (NAVARRO,2002,p.104) afastando a possibilidade de qualquer ação radical que despreze a vida em suas diversas expressões. Eis um dos motivos principais de reafirmar a
necessidade de dialogo, “pois ele compromete o indivíduo humano na sua totalidade; o diálogo entre as comunidades empenha, de modo particular, a subjetividade de cada uma delas” (UUS, 28), promovendo “vida em abundancia” (Jo 10,10)(12).
Quando o ser humano se debruça no entendimento da religião, da divindade e sua simbologia, este rompe com a superficialidade de si mesmo e passa a entender-se melhor. No que tange a dinâmica fundamentalista, intolerante, o indivíduo tem uma forma violenta de viver e experimentar o sagrado e isso reflete em suas atitudes, pois, a divindade foi feita a imagem e semelhança daquele que a experimentou, logo, norteará sua busca religiosa somente pela letra e sobre isso o apóstolo Paulo já alertava, a letra mata mas o Espírito comunica a vida (2 Cor 3,6). Por isso a importância do debruçar-se no entendimento que tange a religião e a divindade, para que saindo da
superficialidade, mergulhe nas águas profundas do diálogo que gera vida comunicada pelo Espírito.
Falar em combate a intolerância religiosa é pensar no Educar para a Paz e articular ações e atividades relacionadas à formação de pessoas, com respeito, dignidade ao próximo, que pensem e ajam de forma pacificadora, ou seja, cidadãos e cidadãs conscientes em melhorar a vida, o ambiente em que vivem. Além do conhecimento, historicamente construído pelo se humano, as instituições religiosas (aqui elencamos a diversidade religiosa presente em nossa cidade), familiares e escolares
precisam auxiliar as crianças e os jovens em sua formação moral, em seus valores, para a constituição de homens e mulheres capazes de dar um significado mais valoroso à vida e aos seus pares. Segundo a ONU (1999) “A Cultura de Paz é definida como um conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos de vida baseados no respeito pleno à vida e na promoção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, propiciando o fomento da paz entre as pessoas, os grupos e as nações, podendo assumir-se como estratégia política para a transformação da realidade social.
Conclusão
A cultura da paz se edifica diariamente: na maneira como nos relacionamos com nossos semelhantes, como lidamos com as dificuldades e conflitos, na valorização do ser humano, do exercício do respeito e da tolerância. E, para que isto ocorra, é imprescindível deixar que os princípios da não violência regulem nossos posicionamentos, palavras e julgamentos. Talvez, dentre todos os processos envolvendo o ser humano, o mais complexo seja o relacionamento dele com ele próprio. Por se caracterizar um processo, as dificuldades se avolumam, não há um manual que nos conduza à convivência fraterna, pacífica em que os territórios são placidamente demarcados e
respeitados. Nesse conflito são inseridas individualidades, competitividade, ganância, ânsia de comando, de liderança e de sujeitamento do outro. Portanto, tudo o que se anseie nesse campo da convivência, transita na esperança e não em dados palpáveis. A paz tem sido um dos grandes anseios da humanidade através dos tempos. Em nome dela, mata-se, agride-se, domina-se. Um dos passos primordiais para se pensar a cultura da paz , é promover práticas sociais que englobem as relações interpessoais, o estímulo à cooperação, a partilha, possibilitando a convivência, a tolerância, o respeito às diferenças de pensamentos, de culturas, classes sociais, raças, religião e
diversidade. Que tenhamos coragem de por em prática tudo o que aqui ouvimos para construirmos a civilização do Amor!
1. Padre da Diocese de São Carlos, SP. Possui licenciatura em Filosofia pela Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo e bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas; mestrando no Programa de PósGraduação em Teologia, Evangelização e Diversidade Religiosa pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – Campus Curitiba. Email: prof.rene@live.com.
2. Quebrou-se o encanto. O céu, morada de Deus e seus santos, ficou de repente vazio. Virgens não mais apareceram em grutas. Milagres se tornaram cada vez mais raros, e passaram a ocorrer sempre em lugares distantes e com pessoas desconhecidas. A ciência e a tecnologia avançaram triunfalmente, construindo um mundo em que Deus não era
necessário como hipótese de trabalho.(ALVES, 2007,p.09)
3. Ao contrário do que foi anunciado, a religião não perdeu a força, a fé cristã não foi banida , a experiência religiosa negou a idéia de que religião é expressão somente da alienação. A idéia de que a modernidade se implantaria à medida que a religião se retirasse da cena não vingou. A modernidade avançou, mas a religião também. A modernidade agoniza, a religião recupera lugares perdidos.(MAGALHÃES; PORTELLA, 2008, p.23-24)
4. É importante salientar aqui o campo mais estritamente científico, acadêmico, sobre a religião. O interesse pela compreensão da religião aumenta na sociedade brasileira. […] Isto se reflete nas diferentes instituições de ensino que criaram nos últimos anos pós – graduações voltadas exclusivamente para o estudo do fenômeno religioso. (MAGALHÃES; PORTELLA, 2008, p.17)
5. Se alguns casos houve perda de adeptos por parte de algumas instituições religiosas mais tradicionais, outras comunidades e instituições surgiram em seus lugares e tornaram-se referências institucionais importantes para as pessoas e as comunidades de fé. (MAGALHÃES; PORTELLA, 2008, p.25)
6. “Não há existência humana sem fundamento. Logo, todos somos fundamentalistas, pois todosnecessitamos de fundamentais, de fundamentos, de alicerces para a nossa existência. E quem desistir deles estará desistindo de si mesmo. O trágico nas formulações de nossos dias, é que fundamentalistas são sempre os outros, jamais nós mesmos (DREHER, 2002, p.09)
7. “Não é Alá quem comete os crimes feitos em seu nome. Não foi Deus quem encomendou aos nazistas o holocausto judeu; não foi Deus quem encomendou a expulsão dos palestinos de suas terras. […] Os seres humanos criaram um sistema que provoca loucuras, em nome de verdade única” (DREHER, 2002, p.12)
8. 1Samuel 17.
9. Na Declaração Universal dos direitos humanos, no artigo 18, legitima o artigo 5º da Costituição Federal: “Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.”
10. Brasil registra uma denúncia de intolerância religiosa a cada 15 horas. Estadão, 2017. Disponível em: <https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-registra-uma-denuncia-de-intolerancia-religiosa-a-cada-15-horas,70002081286>. Acesso em 06 de outubro de 2018.
11. O Papa Paulo VI em sua Encíclica Ecclesian Suam, afirma que “o diálogo deve caracterizar o nosso cargo apostólico” (ES,39). Em outras palavras, o diálogo se faz necessário não só para aqueles que são pastores mas também a todos os cristãos católicos, pois estes são os “discípulos e missionários” (DA,31) de Cristo Jesus.
12. […] o diálogo se mostra, desde então, como grande tarefa para as construções humanas, sobretudo após as traumáticas cisões experimentadas pelas duas grandes guerras. O mundo enfrentava, como nunca dantes, a necessidade do diálogo para a sobrevivência e a convivência humana nos âmbitos locais e mundiais. (PASSOS, in:
PASSOS; SANCHEZ, org, 2015, p. 267)
Referências Bibliográficas
ALVES, Rubem. O que é Religião?. São Paulo: Loyola, 1999.
BÍBLIA, A. Tradução Ecumênica (TEB). São Paulo, Loyola: Paulinas. 1995.
BRASIL. Constituição federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988.
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm> Acesso 06 de outubro de 2018.
CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PROMOÇÃO DA UNIDADE DOS CRISTÃOS. A dimensão ecumênica na formação dos que trabalham no ministério pastoral. São Paulo: Paulinas, 1998.
DOCUMENTOS DO CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II (1962-1965). Declaração Dignitatis Humanae. São Paulo: Paulus,1997.
DREHER,M. Para entender o fundamentalismo. São Leopoldo: Unisinos, 2002.
JOÃO PAULO II. Carta encíclica Ut unum sint. Sobre o empenho ecumênico. 3ª ed. São Paulo: Paulinas, 1995.
MAGALHÃES,A.; PORTELLA,R. Expressões do Sagrado: Reflexão sobre o fenômeno religioso.2ª edição. Aparecida: Santuário,2008.
NAVARRO, Juan B. Dicionário Ecumênico. Aparecida : Editora Santuário, 2002.
PASSOS, João D. LOPEZ SANCHEZ, Wagner (Org.). Dicionário do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulinas e Paulus, 2015.
PAULO VI. Carta Encíclica Ecclesiam Suam. São Paulo: Paulus, 1997.